segunda-feira, 26 de outubro de 2015

As aventuras de Rita Lee no Planeta Terra

"Minha mãe queria que eu fosse freira, sem saber que eu já era viúva de James Dean." Poderia ser apenas mais um caso da jovem artista caçando atalhos que a desviassem das linhas maltraçadas pelos pais. Só que seguir as escapadas da garota Rita Lee jones conta, por tabela, todos os capítulos da história do país do carnaval que digeriu o rock'n rol!. Capricorníana da turma de 47, sangues italiano, americano e pele-vermelha misturados no caldeirão da capital paulista, e a logo ficou sabendo, na escola não se falava em outra coisa.
No começo, eram a voz e os quadris de Elvis, em ritmo de sinuosos e insinuantes vaivéns. Em casa estava proibido: não havia vitrola e a ordem do dia-a-dia era estudar. Depois, sempre às escondidas, mais dois golpes fatais: Beatles, claro, e o pop doce-ensolarado dos Beach Boys. Rita acabou montando, com duas amigas, seu próprio grupo. De noite a colegial saltava pela janela e virava cantora-baterista das Teen Age Singers. Uma via-sacra de shows em escolas, bailinhos de formatura e até calouros na TV.
Logo vem a passagem, de raspão, pelo primeiro capítulo da história. "Descobertas" por Tony Campelo — irmão da Cely —, as três gravam alguns corinhos de fundo para a primeira safra do rock paulistano — gente que depois ia se juntar na Jovem Guarda. — Como Demetríus e os Jet Blacks. Tudo ia muito bem. Até quando a família descobre — uma crise de apendicite aguda em pleno show — e acaba liberando a filha rockeira para ouvir, dançar, cantar e tocar. Rita ganha até uma bateria de presente de formatura. 

Era uma vez uma mulher camponesa, guerrilheira, manequim. Ai de mim!


Com a dissolução do O'Seis, último grupo amador de Rita Lee, após a frustração do compacto nunca lançado, ela e os irmãos Arnaldo e Sérgio Baptista se viram na situação de sobreviventes do dilúvio. Agora, era seguir o caminho a três, já que abandonar a música era a última das opções na cabeça da mocinha Rita Lee. Meio na gozação, o novo trio foi balizado de O Konjunto, e assim eles partiram para tocar em festas e até mesmo em shows na lendária cervejaria paulista Urso Branco, juntamente com o então anônimo Jorge Mautner.

Guitarras na MPB. E explode a Tropicália

Como os três jovens músicos ainda estudavam, os ensaios eram feitos nos fins de semana, na casa de Arnaldo e Sérgio, na rua Venâncio Aires, bairro da Pompéia. Lá, no fundo do quintal, o terceiro irmão Baptista, o gênio da eletrônica Cláudio César, mantinha um estúdio louquíssimo onde fabricava instrumentos musicais e equipamentos do género. E assim prosseguia a esforçada carreira d'O Konjunto: apresentação no programa "Astros do Disco" da TV Record (cantando Shame and Scandal in the Family), nos programas "Parada de Sucessos" (acompanhando Tim Maia) e "Quadrado e Redondo", da TV Bandeirantes e no "Show em Simonal", da TV Record (cantando 500 Miles). Um belo dia, surge no cenário artístico Ronnie Von fazendo a linha príncipe encantado, tentando destronar o "Rei Roberto Carlos" e com seu próprio programa de televisão. Rita comenta o lance: "Como nossa experiência com Roberto Carlos (no tempo do O'Seis) não tinha sido lá essas coisas, os bobos da corte passaram pro lado do príncipe, que fazia uma imagem de mais inteligente e bem informado, aparecendo de cara com a versão Meu Bem, dos Beatles. O programa do Ronnie Von dava condições da gente bolar as próprias apresentações. Só faltava um nome para o grupo, pois O Konjunto não dava pé, né? Na época o Ronnie estava lendo um livro chamado O Planeta dos Os Mutantes. Papo vai papo vem, pintou o nome: Os Mutantes."
Corria o ano de 1967 e o movimento Tropicalista começava a revolucionar a MPB. Um dia, nos bastidores do programa de Ronnie Von, os Mutantes foram convidados para fazer vocais no disco de Nana Caimmy.

Com instrumentos feitos em casa, nascem os Mutantes

Rita relembra como foi: — Entramos no estúdio com nossos instrumentos feitos em casa e demos de cara com um crioulo gorducho, de barba, que falava muito alto, chamado Gilberto Gil. A gente o tinha visto no programa "Fino da Bossa", mas não podíamos imaginar que o crioulo era um tremendo roqueiro. Ele puxou o violão e começou a desafiar a gente, numas de "entra nessa cabeludo!". Começamos a cantar Domingo no Parque, o som foi comendo e, no final, ele disse assim: "Como é, moçada, vamos transar juntos nesse próximo festival da Record?". Não foi preciso um segundo convite...
A apresentação de Gil com os Mutantes, no III Festival da Record foi um escândalo! Eles foram os primeiros a usar guitarra elétrica na MPB, e muita gente nunca os perdoou por isso. De qualquer modo, Domingo no Parque tirou segundo lugar e, a partir daí os Mutantes iniciaram uma carreira divertida e de muito sucesso. Participaram de muitos outros festivais, gravaram cinco LPs (Mutantes I, Mutantes H, A Divina Comédia, Jardim Elé-létrico e No País dos Baurets), tocaram em Lisboa, no famosó Olympia de Paris (dividindo o programa com Gilberto Becaud) e no festival Midem, arrombaram a festa muitas vezes e foram muito, muito importantes para a música jovem brasileira. No começo de toda a loucura, Rita ainda estudava Comunicação na USP (na mesma classe de Regina Duarte), mas logo a música e as obrigações de estrela em ascensão falaram mais alto.
Os Mutantes sempre brigavam entre si (como bons irmãos de cabeça) e, nas inevitáveis separações temporárias que pintavam, Rita tratava de cuidar da própria carreira. Foi nessas que ela topou trabalhar como manequim e artista da firma Rhodia durante um ano, participando de duas feiras industriais que ainda se realizam em São Paulo: a UD e a Fenit. Na primeira, ela participava do show que tentava lançar a moda caipira brasileira, chamada Nhô Look. Na segunda, ela era a estrela do show Build Up, no papel da mocinha pobre que sonhava um dia ser estrela.

Nessa fase, Rita lançou seu primeiro LP solo, Build Up, que, além da música tema do show, Sucesso Aqui Vou Eu, continha seu primeiro bít: José. Pouco depois, Rita lançava seu segundo disco solo: Hoje é o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida.
Faltava pouco para nossa estrelinha encontrar a própria estrada, e assumir corajosamente a barra de segui-la.
Depois da Jovem Guarda, o próximo capítulo já traz outro trio botando fogo e eletricidade no terreno da MPB. Do samba-canção tocado às gargalhadas ao twist da rua Augusta, os Mutantes faziam os rockinhos brasileiros anteriores parecerem cânticos de convento. Mas antes voltemos ao fim das Teenage Singers.


O problema da baterista era que o ídolo Paul McCartney tocava baixo. Ela também queria. Seu primeiro professor foi Arnaldo Dias Baptista que, junto ao irmão-guitarrista Serginho, também circulava pelo circuito de bailinhos e similares com os Wooden Faces. No fim das contas, somando-os ao trio de garotas, nasceu o sexteto Six-sided Rockers. E, para encurtar o conto, sobraram mesmo Rita, Arnaldo e Serginho. Batizados como O Conjunto, chegaram a gravar um compacto: O Suicida, segundo ela "um rock bem paulista que falava em se atirar do Viaduto do Chá".
O nome Mutantes só surgiu em 1966, nos bastidores do programa que Ronnie Von apresentava na TV para concorrer com as tardes de domingo de Roberto e Erasmo (onde a trinca alucinada era barrada, claro, em nome dos velhos bons costumes).
Um dia, faziam em um estúdio o habitual papel de "conho de fundo" quando cruzaram com o compositor da música, Gilberto Gil. Recém-chegados a São Paulo, Gil e Caetano tramavam o movimento Tropicalista, para ligar a MPB na tomada da era Psicodélica. Conversas foram e vieram, o baiano convidou os Mutantes para acompanhá-lo no festival da TV Record.
O histórico festival de 1967. De um lado, coloridas alegrias da Tropicália, fundindo o iê-iê-iê e o folclore nordestino numa só panela. Do outro, a chiadeira cinza-ranzinza dos puristas, torcendo pelo violão & banquinho "brasileiros" contra as guitarras "imperialistas". A televisão transmitia em clima de final de Copa do Mundo. E, bem no meio do fogo-cruzado, os Mutantes; afinal, eram deles as guitarras de Domingo no Porque.
Eles continuavam rindo. Num de seus discos avacalham sem piedade o Chão de Estrelas de Sílvio Caldas, o máximo da emepebice rebuscada. Enturmados de vez com a troupe tropicalista, lá estão eles na capa e no recheio de Tropicália, o famoso disco-manifesto do movimento. E vão continuar anarquizando: Rita de noiva grávida, Arnaldo saído da Idade Média e Sérgio de toureiro. Aparece até um abaixo-assinado dos tradicionalistas, críticos e músicos, pedindo a proibição das guitarras.
O pessoal esperneia mesmo quando o grupo grava um jingle para a Shell. A verdade é que o merchandisíng vai fundo. Em 1969, chega a vez do grupo se apresentar em Paris, vendido com o rótulo de "Beatles brasileiros". Uma típica sessão de macumba para turista; desta vez, Rita vai de baiana, Arnaldo de índio e Sérgio de cangaceiro. Até o primeiro LP individual da mutante, Build Up (1970), vem embrulhado em uma promoção da Rhodia, embalando Rita de modelo.
Por essas e outras, o tempo vai fechando sobre o teto dos três. A chuva de boatos e fofocas sobre a separação engrossa com o lançamento de um novo disco da cantora a sós, apesar de produzido por Arnaldo, com quem se casara. O título é dos mais sintomáticos: Hoje É o Primeiro Dia do Resto do sua Vida. Rita deixaria os Mutantes? Ela desmente... por pouco tempo.

Em 1973, a gravadora Phonogram prepara uma grande festa-show com todo seu elenco. Atrações: surpresas suculentas, como os duetos Gilberto Gil/Chico Buarque e Caetano Veloso/Odair José. Entre elas, Rita lança com a amiga Lúcia Turnbull sua nova aventura: o nome é As Cilibrinas; o som só voz e violão.

Nos Mutantes, Rita compunha uma boa fatia do repertório e das gracinhas corrosivas. Quem traçava as coordenadas, porém, era Arnaldo, que às tantas pretendia uma virada para o estilo dos grupos progressivos ingleses; Trocando em miúdos: adeus letras debochadas, alo misticismos seriosos; adeus suingue e requebrado, alo firulas e pompas classicosas. Na época, a loirinha estava, inclusive, mais ligada no pop futurista de David Bowie. Resultado: tingiu também o cabelo de vermelho e se mandou.
Mas As Cilibrinas não podiam mesmo durar muito. Venceram as saudades da eletricidade e da cozinha pesada, o bloco baixo-bateria. Quando chega a hora de entrar no estúdio, Rita já tinha acoplado o Tutti Frutti, grupo ao gosto: rock entre o cru e o malpassado, levemente pesado, altamente dançável. A festa desse primeiro encontro, Atrás do Porto Tem uma Cidade (1974), marca o pulo fora da Philips/Phonogram.

Pois Rita não tinha gostado nada da "limpeza" feita pela gravadora no som da banda. Mesmo com a reviravolta tropicalista, uma batalha mais dura ainda emperrava a guerra da digestão. Pelo menos, enquanto encarregavam técnicos de filtrar o rock ao gosto do "consumidor comum": ou abaixam as guitarras, ou tapam tudo com a voz. No caso dela, a gota d'água pingou quando, às escondidas, revestiram a música Menino Bonito de violinos açucarados.

Na Som Livre começa a decolagem até o capítulo de hoje, Rita Lee Superstar. Aproveitando o embalo de Ovelha Negra (1975), espalhada em cadeia de rádio e TV, sai com o Tutti Frutti numa excursão missionária, até a Amazónia, levando rock'n roll. Roqueiros de todo o país, então em quase absoluto jejum, dançavam e se lambuzavam. Iluminação multicolorida, som estrondoso mas cristalino, todos os ingredientes do espetáculo rock-ao-vivo-para-os-cinco-senti-dos. De repente, Rita Lee era a primeira e única dama desse bando de órfãos.

Para ela, um fruto dessa caravana é o sonho fixo em todas as entrevistas da época: molhos e temperos para o "roquenrou" à brasileira. Tanto achou a trilha que Lança Perfume vendeu, em 1981, milhares de cópias na França e na América do Sul. Mas os últimos degraus para o panteão não podem ser contados sem a entrada em cena de Roberto de Carvalho.
A hora é oportuna. Em 1976, ele aparece entre várias turbulências. Primeiro, Entradas e Bandeiras — o LP composto durante a tournê missionária — faz despencar o pique das vendagens e tira o Tutti Frutti de campo. Superestafada, Rita acaba deixando o disco semipronto para o grupo completar. O resultado é o extremo oposto dos "baixos-teores" que provocaram o atrito com a Philips; ou seja, toneladas de pauleira enterrando sua voz. Com Roberto assumindo guitarra e teclados, as sobras do Tutti Frutti são reformadas com o nome Cães & Gatos.Com o velho amigo Gil Rita cai na estrada com o show Refestança (que deu o único disco ao vivo da roqueira). Para o ponto alto, a dupla vai pescar É Proibido Fumar no baú da jovem Guarda. Pouca irreverência perto de Arrombou o Festa, que joga de Chico Buarque a Benito de Paula no mesmo saco da MPB seriosa. Apesar de um ou outro protesto furioso, o compacto faz rir os quatro cantos do país. E, como a MPB não se toca, ela volta à carga, no ano de 1979, com Arrombou a Festa nº 2.
Quando o guitarrista-empresário entra de parceiro, o casal passa a aprender e cultivar a arte de agradar a todos os paladares. Nesse LP de 79, o rock é apenas um entre os ritmos da salada pop. Tem até uma discothèque descarada, para horror da legião roqueira que começa a resmungar da deserção. Choramingos à parte, o disco vende quase meio milhão de cópias. O grande sucesso, Mania de Você, inaugura uma Rita Lee romântica de fina sensualidade, hoje marca-registrada.

Consagrada como primeira-dama da música pop brasileira, todos os antigos sussurros de "gringa imperialista" entram para a lata de lixo da história. De repente, passam inclusive a considerar seu arsenal de duplos-sentidos descendente direto das marchinhas do mestre Lamartine Babo. Transbordando de adoração, Caetano Veloso a cita como a "mais completa tradução" de São Paulo. E, para finalizar, vem o aval de João Gilberto, convidando-a para cantar em seu especial para a TV.
Ele, por sua vez, comparece no último disco de Rita em uma gozação dos sambas ufanistas à La Aquarela do Brasil. Com o nome de Roberto de Carvalho já dividindo as honras da capa, o LP retoma o sucesso de Lança Perfume — o anterior, Saúde, vendera apenas a metade. Além disso, escancara-se ainda mais o horizonte pop do casal, atacando de foxtrot, ritmo que embalou os bailinhos da vovó.

Avós e netinhos se misturam à juventude dourada nas platéias que lotam a excursão milionária no verão 82/83. Em efeitos especiais e folia generalizada, organização e entourage, o show não deve nada às superproduções do circo do rock internacional.
No balanço final, 23 cidades e um público total superior a dois Maracanãs. Nas agendas do parceiro-empresário, planos para disseminar a febre planeta afora. Pode ser que todas as brigas e batalhas sejam coisa do passado. Pode ser até que uma nova safra de rocks engraçadinhos — chamados por aí de "filhos de Rita Lee" - esteja superpovoando as trincheiras cavadas desde os tempos dos Mutantes. Mas as aventuras da "viúva de James Dean" não terminam aqui. Revista Pop 1974 - As mil cores da casa de Rita Lee

Parece uma casa de conto de fadas. Fica no alto de uma colina, cercada de árvores, com um lago no fundo. O ar é puro. E as pinturas coloridas das paredes trazem a natureza ainda mais para dentro de casa. Ali, bem longe da poluição do centro de São Paulo, Rita Lee está morando com o pessoal do Tutti Frutti — conjunto que montou para acompanhá-la, desde que se desligou dos Mutantes.

Para eles, a vida é, antes de tudo, uma tremenda curtição. Acordam com o cantar dos passarinhos, passeiam de barco no lago, tomam sol no gramado que desce a colina a partir da varanda, fazem a própria comida e a toda hora estão despejando a criatividade e as boas vibrações nos instrumentos musicais. "Essa paz e o contato com a natureza estão me fazendo compor cada vez mais", diz Rita, enquanto rola na grama com seu novo namorado, Andy Mills, um americano que era técnico de som de Alice Cooper. A noite, o fogo de uma imensa lareira ilumina a casa e embala os sonhos de Rita Lee e seus amigos.

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